20 junho 2005


Steven Kline, director do Laboratório de Análise dos Media da Universidade de Vancouver, inventou um aparelho que analisa as reacções fisiológicas humanas a qualquer coisa visionada, especialmente em ecrãs. Concluíu que, mesmo perante imagens fragmentadas que passam a uma velocidade superior à necessária para formar uma opinião, o espectador tem reacções fisiológicas instantâneas. Os ecrãs são hipnóticos e desafiam-nos a responder “como a luz de um interrogatório da polícia de um filme” (nota 1). Marshal MacLuhan salienta o facto de a televisão alterar os sentimentos e sensibilidades do espectador, especialmente quando não lhe prestamos atenção. Sem ter consciência, quando estamos distraídos e os filtros do processo de atenção estão inactivos, absorvemos modelos de comportamento e tipologias de personalidades, criando esterótipos e fazendo juízos de valor. A atenção é a integração do eu cerebral na imaginação, tanto no plano do pensamento como no da acção. Assim, é simples a ligação do indivíduo ao ecrã (muitas vezes, encondendo-se por detrás de um nickname) estabelecendo opiniões simplistas e irreflectidas. O ecrã representa a personalização do amigo que não recrimina, que aceita, que conduz ao mundo onírico onde cada um pode vestir o papel que lhe convém, pode usar a máscara do jovem musculado e a da mulher de corpo deslumbrante. Como qualquer outro bem de consumo, os conteúdos da Internet estão condicionados à lei de mercado, por isso “a liberdade e a soberania do consumidor não passam de mistificação. A mística bem alimentada (e, antes de mais, pelos economistas) da satisfação e da escolha individuais, ponto culminante de uma civilização da «liberdade», constitui a própria ideologia do sistema industrial, justificando a arbitrariedade e todos os danos colectivos: lixo, poluição, desculturação.” (nota 2)

O ecrã da Internet preenche o espaço vazio causado pela frustração da não satisfação dos requisitos da sociedade veloz, competitiva e implacável onde vivemos e onde reina a indiferença de massa. Queremos ser eternamente jovens e produtivos, vivemos a apoteose do consumo na esfera privada e aproveitamos os modelos de vida oferecidos pela Internet, pela televisão e pel ocinema que nos incrementam a feição narcisista e nos obrigam a reciclar os sentimentos, tornando-os sub-produtos prontos a consumir pela subjectividade libidinal. A compaixão, amor, tristeza encontram escape na realidade difundida pelos ecrãs que funcionam como aparelho terapeutico da sensibilidade humana. Identificamo-nos com o desgosto e alegria de personagens e vivemos distraídos dos nossos filhos que, à porta da discoteca, estão indecisos sobre se hão-de ou não experimentar uma nova droga. Vivemos no tempo dos cães mecânicos que imitam em tudo os reais, com a vantagem de não largar pêlo no sofá nem deixar o cheiro de urina no hall de entrada.
O reino hedonista aprisionou-nos num papel social que sobrevaloriza a personalização do Eu, criando o vazio interior e a incapacidade de sentir a perenidade. Vivemos a apologia da climatização dos sentimentos e emoções. Na Net, os sentimentos são recicláveis, o sexo é asséptico, não há a promiscuidade dos corpos nem a troca de fluidos. É a apologia dos corpos sem órgãos de que fala Deleuze e Guattari. A sociedade ocidental caminha numa aproximação vertiginosa para o universo de Cronenberg, para uma sociedade de espelhos, no qual cada ecrã significa a nossa própria imagem. “A imagem especular representa aqui simbolicamente o sentido dos nossos actos, que formam em redor de nós um mundo à nossa imagem.” (Baudrillard, p.202)
“Já houve uma altura em que podíamos acreditar na realidade. Platão e Aristóteles tinham ditado as regras. … Numa altura em que o mundo era real, o objectivo de toda a investigação científica era descrever um universo estável e fiável. … Hoje sabemos que os átomos são pouco fiáveis e somos receptivos a ideias como a de Sroendiger, «as coisas só tendem a ser». A partir de Einstein, Niels Bohr, Heisenberg, Freud e a televisão, a realidade está a desintegrar-se … Se o mundo já foi real, porque é que já não é?” (KERCKOVE, pp.169-170) Se a realidade é aquilo que se pode cheirar, ver, tocar, então a realidade é um conjunto de sinais eléctricos interpretados pelo cérebro. Então ela é o que sentimos diante de um ecrã. Somos também homo videns. Somos o novo tipo de homem referido por Sartori gerado por um “meio criador de um novo anthropos”, que transforma a linguagem conceptual numa linguagem perceptiva e concreta, mais pobre, em que o imediato e o espontâneo é sobre-valorizado. Os termos axiológicos da Idade Clássica mudaram: hoje são as opiniões que substituem a realidade, num mundo em que o princípio da instabilidade é a única certeza. Marshal MacLuhan afirmou que os media são extensões do corpo humano. O computador seria uma prótese do cérebro, agindo respectivamente como olho, o cérebro e a própria pele humanas. Os novos interfaces dos novos media, dotados de ecrãs e interagindo com o indivíduo, recebendo e dando ordens, estão cada vez mais próximos do humano. A Internet, além de funcionar como um cérebro à escala universal, é também um espelho. Num mundo narcisita, só poderíamos passar a maior parte do tempo diante dele.
"O homem que reivindica a sua libertação tem, hoje mais do que outrora, necessidade de aprender a querer. Ora, isso é-lhe difícil porque, submerso pelo enervamento da fadiga nervosa, é incapaz de se dominar. ... Para prevenir e curar a fadiga é necessário aprender a restabelecer o equilíbrio nos centros regualdores da base do cérebro. É necessário tomar contacto com o real." Paul Chauchard, O Cérebro e o Sistema Nervoso
NOTAS:
1- KERCKHOVE, Derrick, A Pele da Cultura, 1ª ed., Lisboa, Relógio D’Água Editores, 1997, p. 41.2- BAUDRILLARD, Jean, A Sociedade de Consumo, ed. 70, Lisboa, 1991, p. 72.

7 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Encontrei o seu blog hoje. Antes de mais parabéns pelos conteúdos. Os posts que li, achei-os bastante interessantes.
Então começo por me apresentar. Chamo-me Luis Monteiro e sou estudante do curso de Ciências da Informação, em Coimbra. Sou também um cinéfilo inveterado, o que aguçou ainda mais o interesse pelo seu blog.
Também escrevo os meus artigos sobre cinema, no webjornal do meu instituto e no jornal da minha cidade (Seia). Também já fui membro do juri do CineEco.
Achei bastante interessante o seu texto sobre as respostas fisionómicas automáticas aos dispositivos. Também tive o prazer de dar essa matéria em Teorias da Comunicação. O próprio Kerckove não fez experiências com o dispositivo?
Coincidência ou não, vou fazer uma frequência na sexta feira de Antropologia Cultural e um dos filmes que é para analisar é o Asas do Desejo do Wenders. Ainda estou indeciso entre este e o Matrix. Em termos antropológicos (e envolvendo a religiosão) há muito que se dizer de ambos.
Certo é que tem aqui um futuro visitante regular do seu sitio. Despeço-me então.

Luis Monteiro

10:33 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Se por acaso tiver conhecimento de textos na net que tenham como fundo a análise antropológica do «Asas do Desejo», agradeço a divulgação.

Luis Monteiro

12:10 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Já existe um cinecultura...cara!!!

11:53 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

cinecultura.blogspot.com
from PT.

11:54 da manhã  
Blogger Sérgio A. Correia said...

Excelente texto! Parabéns!

11:12 da manhã  
Blogger Anastácio Neto said...

Magnífico ensaío. Não é todos os dias que encontro num blog um texto tão denso, recheado de ideias seguras, complexas e urgentes. Finalmente um espaço interessante sobre cinema, comunicação de massas. Parabéns.
Títulos como Matrix e Clube de Combate são propostas incontornáveis em final de milénio para uma linha de análise esquizo-social. Mais uma vez parabéns pelo blog. já é uma referência.

4:05 da manhã  
Blogger Sérgio A. Correia said...

Mais do que interessante, este blog é simplesmente brilhante! Voltando à questão da força hipnótica do ecrã, permita-me "acrescentar" apenas uma nota de roda de pé:: lembro-me de uma vez de ter lido um artigo sobre a utilização da televisão como meio terapeûtico. Em poucas palavras, era o seguinte: na antiga União Soviética (não sei se eles ainda hoje recorrem a esse sistema...) dada a extensão do território, os médicos tratavam certos tipos de doenças (creio que do foro psiquiátrico) usando precisamente a "carga emotiva" das imagens televisivas.

3:31 da tarde  

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